Uma carta de amor

Vamos conversar sobre Garnet.

Pra quem chegou na minha vida não tem muito tempo, ou caiu nessa news de paraquedas, façamos um contexto. E talvez seja bom também pra quem tá acompanhando há tempos, porque faz tanto desde tudo... Já vivemos tantas vidas desde lá, acho que vai ser bom refrescar a memória.

Escrever eu sempre escrevi, mas digo que comecei "oficialmente" a ser escritora quando passei a postar minhas fics. Comecei no universo de Kingdom Hearts, e, por mais que vez ou outra me aventurasse por outras bandas, esse era meu foco. E principalmente a minha primogênita, Past and Future, que virou uma duologia, e depois trilogia, e depois quadrilogia (não cheguei a concluir a segunda, então ficou sem terminar, uma pena de verdade porque as sequências eram babadeiras). Em algum ponto, a ideia pra uma quinta história me cutucou, mas pensei "mds ninguém mais vai me aguentar, melhor não" e meu cérebro sussurrou "então faz ser original". E foi assim que esse livro surgiu.

Nunca escrevi sequencialmente tão rápido. Quem tá acostumade comigo sabe, eu sou escritora jardineira raiz, e era muito mais naquela época. Escrevo completamente fora de ordem, porque preciso guardar o que tá vindo na minha mente naquele momento, e quase nunca vem inícios. Garnet, porém, foi exceção, e me entregou um capítulo atrás do outro sem parar. Não que eu não estivesse anotando coisa mais pra frente do livro, porque também tava. As ideias não paravam, e inclusive saiu por estradas que nem eram o que eu tinha pensado de início, mas é a escrita que manda, então só fui. Foi divertidíssimo desbravar essa jornada. Comecei a postar no Nyah junto com as fics sem dar muito crédito, porque eu sempre travo, né? Mais uma pra pilha de não-terminadas, mas vamo curtindo enquanto dá.

Só que... eu terminei. A esse ponto, já tinha uma saga inteira em mente inclusive. E leitores. O sonho de ser autora publicada, que já existia há alguns anos, mas apostado em outros títulos, de repente se tornou de Garnet. De repente se tornou real em Garnet. Minha singela história foi retirada do site para se tornar livro de editora (ou melhor, gráfica, já que tive que pagar por isso. fiquem atentas, crianças. mas em nome tecnicamente é). Aos 17 anos, em Outubro de 2013, Garnet: Labirinto de Sombras era um livro físico, real na minha mão, e na mão de tantos outros que me acompanharam durante sua produção ou que tinham acabado de chegar. E o próximo livro logo vem, não se preocupem, já tem até uma boa parte escrita!

Só que não veio.

E não que a ideia não estivesse comigo, porque estava. Não que eu não quisesse, e é tão complicado dizer isso, porque não tinha nada que eu queria mais do que sentar e escrever.

Só… não veio.

Veio eu não conseguindo nota no ENEM. Veio eu dando atenção a outra saga. Veio um bloqueio criativo horrível. Veio eu escrevendo outra história porque era a única coisa que conseguiu me tirar daquele fosso. Veio eu entrando na faculdade. Veio minha saúde mental cada dia mais frágil.

Veio eu pegando Garnet pra reler e pensando "nossa, quanta coisa... errada. mal feita. ruim.". Veio eu já não conseguindo responder direito quando me perguntavam sobre o livro, sobre o próximo, sobre o que eu gostava na história. Veio eu não conseguir reler, ter literalmente nervoso só de pensar em reler, porque eu não gostava mais do que tinha escrito. E eu amo o que escrevo, sabe? Posso até pensar que podia ter escrito melhor, mas eu amo. Eu amo reler. Mas só pensar nisso me dava asco. É um sentimento horrível, e extremamente alerta pra quão errado algo estava ali.

Algo sagrado pra mim quando se fala de escrita é fidelidade de personagem. Eu preciso que eles sejam fiéis a quem são. Quer me fazer largar um livro bem rápido? Personagem que troca de personalidade a cada folha. Que vai se adequando ao que a história precisa, e dane-se se elu faria isso ou não, se isso contradiz o que foi dito antes. Que faz escolhas priorizando o roteiro, e não o que genuinamente fariam. Prefiro uma história fraca mas com personagens fiéis ao seu cerne a uma história "incrível" com personagens que se traem.

Um belo dia, enquanto caminhava pra aula, se não me engano, eu tive o pensamento "nossa, a Elise nunca fugiria daquela luta no início da história. talvez fosse uma escolha burra, e ela com certeza tava machucada emocionalmente, mas a Elise não foge. ela nunca foge.". E daí eu pensei em uma versão alternativa onde ela não tinha fugido. E comecei a pensar em algumas outras coisas que eu sabia, tinha certeza, que seriam as ações que cada um nessa história faria, por mais que eu não soubesse onde elas iam dar.

E aí, eu travei de vez.

Eu tive a certeza de que não conseguiria voltar a escrever essa saga do jeito que ela estava, porque eu tinha apresentado ela da maneira errada ao mundo.

Foram alguns dos meus piores dias, e genuinamente não to exagerando. Foram dias que eu seguia minha rotina mas sem estar realmente lá, porque minha mente estava em desespero. Pensar que eu não podia voltar a esse universo me machucava de uma maneira insana, porque eu amo ele. Eu amo essa história. Não conseguia nem consigo me imaginar sem ela. Pensar que teria que abandoná-la, e assim, por erro meu, era tão angustiante que... eu precisaria ter colocado um aviso no início do post pra dizer o que realmente passou pela minha cabeça, mas eu tava no fundo do poço mesmo. Acreditem nisso.

Porque foi só por isso que eu topei uma reescrita.

Economicamente falando, e racionalmente falando, reescrever um livro publicado é uma decisão estúpida. Existiam talvez rotas menos radicais, mais simples, mais fáceis.

Mas eu sabia que não iam funcionar. Não depois da visão que tive de tudo que podia ser. De tudo que eu precisava acertar, consertar, remendar. Precisava ser do 0. Era a última chance, a última cartada, e ou funcionava ou eu jogava fora - e aí surtava logo depois. E (isso vai soar bem irônico daqui a pouco, mas aguentem), conhecendo como me conhecia, sabendo que ia enrolar demais mesmo não querendo, me delimitei um prazo de verdade. Se eu não fechasse essa reescrita em três meses, ela seria cancelada, e teria que viver sem essa saga.

E sabem de uma coisa que aprendi nesse tempo? Desespero é ótimo pra me mover. O ruim dessa técnica é que eu tenho que acreditar de verdade pra funcionar, mas naquela época eu totalmente levei a sério o que tinha acordado comigo mesma, então super funcionou. Escrevi feito louca - não do mesmo jeito como foi no início, mas funcionou bem. Fluiu pra lugares incríveis, pra decisões que não pensei que tomaria mas foram tão óbvias enquanto reescrevendo, pra perspectivas inesperadas, personagens e situações novas. Garnet era rocha bruta (com o perdão do trocadilho não intencional), re:Garnet me mostrou quem cada um realmente era.

Ao final dos três meses, ainda não tinha fechado certinho, mas decidi me passar a mão na cabeça porque sinceramente tava uns 90%, talvez mais. Eu conseguiria terminar logo, e aí começar o processo todo de publicar de novo.

Quando comecei a reescrita? Final de 2016.

É. Eu disse que vocês ririam em breve, vai.

Eu queria ter uma explicação simples.

Quase nada na minha vida emocional tem uma explicação simples. É sempre uma pilha de coisas, e que pelo menos metade soam muito pequenas ou bobas para afetar do jeito que afetam. Mas é o que eu tenho, e esses últimos anos tenho aprendido a aceitar que o que me afeta, me afeta, e não vai ser negando ou desmerecendo isso que vai desaparecer ou melhorar. Só não deixa mais fácil quando tenho que comunicar a outras pessoas.

Eu entendo que não devo explicações, porque realmente não devo. Escrever não é algo simples, e cada um tem seu processo pessoal - e por isso é péssimo quando apontam "mas Fulano publica um livro novo a cada ano, Ciclana tem rotina super corrida e escreve", já basta nossas próprias mentes nesse jogo de comparação. Só que eu gosto de explicar. Eu me sinto melhor quando sabem meus motivos e razões pra agir como to agindo - em boa parte por conta de várias inseguranças, que tenho levado pra terapia, mas ajustar a cabeça e desfazer padrões também não é um processo linear.

Primeiro de tudo, a minha miopia temporal é péssima e sempre atuante. Eu não tenho noção de tempo. Constantemente me acontece algo do tipo: digo que vou fazer x semana que vem > totalmente some da minha cabeça > vejo algo que lembra sobre x > "ah, verdade, vo fazer, nem tem tanto tempo assim, né?" > checo as datas e descubro que passou dois meses. Acontece um pouco menos agora que tenho um nome pra isso, e aprendi umas técnicas pra driblar esse esquecimento, mas eu não tinha essas ferramentas na época. Eu ainda sou pega desprevenida mesmo tendo! Me soa irreal que é mesmo 2016 a data da reescrita, se não fosse eu ter registros com isso eu não acreditaria, pra mim parece que tem uns três anos? Chutaria cinco por saber que foi antes da pandemia (o fato que já tem que se falar em cinco anos pra antes de 2020 também me deixa meio perdida, não vou mentir), mas só por isso? Me parece mais às vezes mas só por como já aconteceu muita coisa na minha vida de lá pra cá, como diria Pitty já morri umas quatro vezes, quando tento racionalizar fica uns três. E de repente é na verdade sete, quase oito. Insano.

Também tenho a péssima mania de adiar. É sempre pra depois. Depois que eu ajeitar isso aqui na história. Depois desse período. Depois que eu definir aquele detalhe do próximo livro. Depois do TCC. Depois que eu me mudar. Depois que eu conseguir um emprego. Depois que eu me adaptar ao emprego. Depois, depois, depois. Depois disso, totalmente vou ter tempo e foco pra essa saga, aí posso sentar e fazer! E descobri que a vida não gosta nada disso - e isso também alimenta minha miopia temporal, porque vire e mexe são pontos que não tem um prazo exato, e de repente tem outras coisas no meu espaço mental quando/se chega esse depois.

E, acima de tudo, eu não tava bem. Dizia que tava, fingia que tava, me convencia que tava, mas não tava. Me recusava a acreditar, a aceitar, a procurar ajuda, mas não tava. Eu brinquei quotando Pitty, mas nem foi tanta brincadeira assim, porque a eu de 2016 definitivamente não é a eu que tá escrevendo isso agora. Teve literalmente uma pandemia mundial no meio do caminho, sabe? Ninguém que passou por ela saiu como o mesmo, imagino. E ainda tive processos pessoais no meio também. Larguei a faculdade dos meus sonhos no meio do TCC. Passei por um processo de luto que levei anos pra entender assim, e portanto negligenciei por tempo demais. Uma amizade extremamente importante simplesmente acordou um dia e decidiu que isso não valia nada e morreu pro grupo (inclusive, quando encontrarem um personagem que aleatoriamente trocou de nome na reescrita, saibam que não foi por querer. às vezes as pessoas tomam decisões por nós e temos que seguir a vida com isso). E como que a escrita não vai ser afetada por isso tudo, né? Não vou dizer que não escrevo quando to mal porque escrevo - e graças a Deus que escrevo, ou vocês já tinham me perdido. Mas obviamente afeta como me vejo, o quanto confio em mim, e também não é qualquer história que vou escrever quando to com a cabeça presa nesses lugares.

Tem dias que sinto medo, muito medo mesmo.

Medo que já passou o tempo dessa história. Medo que não sei mais escrever ela. Medo que não vou saber encaixar as ideias novas, que não vou ter as ideias certas. Medo que vou deixar algo escapar e de repente anos depois precisar reescrever de novo.

Tem dias que parece que só consigo sentir medo.

E aí... aí eu releio uma das cenas que escrevi nesses últimos anos, e eu adoro o que vejo nela. Ou então me vem um diálogo na mente, e flui tão natural. É como o universo me mandando uma mensagem, bem simples mas intensa, e extremamente verdadeira. Você sabe, sabe sim, você conhece eles melhor do que ninguém. Essa história é sua. Vai encaixar.

É meio que uma metalinguagem, se parar pra pensar, porque muito de Garnet é sobre medo. Medo de não conseguir cumprir a missão que o destino te deu, de não poder proteger quem ama, de perder quem importa pra você uma vez que souberem seus erros. Conversava comigo quando escrevi a primeira versão, conversava comigo quando decidi reescrever, e conversa comigo agora.

Persistir com essa saga é minha carta de amor ao universo. À confiança que tenho na escrita, na minha escrita, e talvez mesmo a mim mesma. Cada linha escrita é um momento que olho na cara dos meus demônios e digo "hoje não, meus amores. hoje não.".

Algumas pessoas chegaram a ler a reescrita - por inteiro do que eu tinha, alguns capítulos, um capítulo. A maioria adorou, me parabenizou, disse que minha escrita tá mais madura, que realmente faz bem mais sentido certas divergências.

Minha mãe detestou a ideia desde o início. E, indo de coração fechado, claro que detestou o que viu. Faz parte, né? Nem todo mundo gostou do primeiro livro também, imagino, e claro que tem gente que não vai gostar dessa versão. Posso aceitar isso.

Uma vez, quando pela milésima vez ela me acusava pela reescrita, ela disse que eu não gostava dos meus personagens se fiz o que fiz. Foi uma das coisas que mais me machucou do que ela já me disse, mas também uma prova inegável de como a gente se distanciou conforme eu cresci. Porque não poderia ser menos verdade.

É o oposto. Eu amo tanto que não consigo pensar em mim sem eles. Amo tanto que faria uma decisão insana como essa. Amo tanto que não me perdoaria se não fosse a melhor e mais sincera versão deles a que está no mundo.

Não posso obrigar ninguém a ler essa versão nova. Não posso prometer quando vai sair, se vai sair logo (tentei no início, e nitidamente não deu muito certo). Detesto isso, sendo bem sincera, mas tem pouca coisa segura aqui. Pouquíssima certeza.

Mas, se tem algo que peço que acreditem, é no quanto amo essa saga. Duvidem de mim, mas não do amor. Nunca do amor. Essa história é minha certeza, e, de alguma maneira, isso vai bastar.

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